Comentários sobre a judicialização (da política) e ativismo judicial

Artigo apresentado em cumprimento às exigências da disciplina “Constitucionalismo Democrático e Reordenação Jurídica”, ministrada pelo Professor Doutor Rodolfo Viana no curso de Mestrado em Direito.

Para melhor compreender os conceitos de judicialização (da Política) e ativismo judiciário (ou ativismo judicial), importante fazermos uma breve consideração histórica sobre o constitucionalismo no mundo e no Brasil. Isso porque, não raro, tais definições são utilizadas de forma superficial como se fossem situações sinônimas, causando certa confusão no leitor que deixa de ser informado e compreender as suas origens e as importantes distinções existentes a respeito de cada um desses movimentos constitucionais políticos-jurídicos.

Comentários sobre a judicialização (da política) e ativismo judicialAnalisando a história das constituições escritas, vê-se que a Constituição Americana de 1787 e a Francesa de 1791 deram origem no séc. XVIII ao Estado Liberal como forma de contrapor ao absolutismo da época. O movimento constitucionalista desse período visava a limitação do poder estatal e a proteção das liberdades individuais por meio de uma menor intervenção do Estado na política e economia. Deu-se origem ao constitucionalismo clássico do Estado Liberal caracterizada pela não intervenção do Poder Público e primazia da defesa e garantia dos direitos civis e políticos dos indivíduos.

Nesse contexto do constitucionalismo clássico advindo do Estado Liberal, as constituições foram concebidas com as percepções, traumas e receios frutos da época absolutista, resultando em instrumentos formais de racionalização do poder estatal, quase como “códigos individualistas”.1

Porém, com o passar do tempo se percebeu que a opção por um Estado Liberal não intervencionista aumentou as desigualdades sociais advindas do liberalismo econômico. Os direitos e garantias individuais (entre eles especialmente o da igualdade), eram assegurados apenas do ponto de vista formal nas Cartas Magnas. As diferenças sociais de fato se tornaram evidentes entre os cidadãos que, em tese, estariam protegidos de forma igualitária pela constituição escrita, gerando enorme descontentamento e revolta da sociedade diante do inerte posicionamento do Poder Público.

1 CANOTILHO, Jose Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed. 6 reimp. Coimbra: Coimbra, 2003, p. 111.

Com essa nova percepção, no século XX o Liberalismo Econômico entrou em crise porque passaram a pleitear um ente político que intervisse e garantisse mais os direitos e garantias individuais previstos formalmente nas constituições. Corroborada pela 1ª Guerra Mundial, a sensação de desamparo coletivo tomou conta dos cidadãos que perceberam os seus direitos sociais, econômicos e culturais devastados.

Nesse período, inúmeros movimentos sociais surgiram como estopim para surgimento de um novo constitucionalismo, dentre os quais se poderia citar a Revolução Mexicana de 1910 e Revolução Russa de 1917. Tornou-se necessário o surgimento de uma visão constitucional mais moderna e social, com modificação da postura do Estado.

A partir daí, surgiu o constitucionalismo social com a intervenção do Estado por meio de prestações sociais positivas para respaldar as garantias e direitos fundamentais, concretizando os ideais de igualdade formal e material. Houve então o rompimento com o ordenamento jurídico-liberal anterior por meio da promulgação de uma nova ordem constitucional. O Estado então Liberal passou a intervir no domínio econômico para reequilibrar as relações sociais em prol de uma sociedade menos desigual e mais justa.

Mais recentemente, na segunda metade do século XX se assistiu a uma redefinição e releitura dos direitos e garantias positivados constitucionalmente. Após a 2ª Guerra Mundial, houve uma nova valoração dos direitos individuais e sociais positivados, dando origem a um constitucionalismo contemporâneo (ou neoconstitucionalismo2) que consolidou o atual Estado Democrático de Direito (Estado Fraternal).

2 “O neoconstitucionalismo suplantou o Estado Legislativo de Direito e consubstanciou o Estado Constitucional de Direito, de modo que as condições de validade das normas jurídicas passaram a depender não só do aspecto formal, mas também da compatibilidade material com princípios e regras constitucionais. Outra importante característica deste constitucionalismo é a vinculação dos poderes aos preceitos constitucionais.” MACHADO, Clara Cardoso. Limites ao ativismo judicial à luz do

Segundo Carlos Ayres Britto o surgimento do novo Estado Fraternal veio de uma evolução histórica. Nas palavras do d. Ministro:

“Efetivamente, se considerarmos a evolução histórica do Constitucionalismo, podemos facilmente ajuizar que ele foi liberal, inicialmente, e depois social. Chegando, nos dias presentes, à etapa fraternal da sua existência. Desde que entendamos por Constitucionalismo Fraternal esta fase em que as Constituições incorporam às franquias liberais e sociais de cada povo soberano a dimensão da Fraternidade; isto é, a dimensão das ações estatais afirmativas, que são atividades assecuratórias da abertura de oportunidades para os segmentos sociais historicamente desfavorecidos, como, por exemplo, os negros, os deficientes físicos e as mulheres (para além, portanto, da mera proibição de preconceitos). De par com isso, o constitucionalismo fraternal alcança a dimensão da luta pela afirmação do valor do desenvolvimento, do meio ambiente ecologicamente equilibrado, da democracia e até certos aspectos do urbanismo como direitos fundamentais. Tudo na perspectiva de se fazer da interação humana uma verdadeira comunidade; isto é, uma comunhão de vida, pela consciência de que, estando todos em um mesmo barco, não têm como escapar da mesma sorte ou destino histórico.”3

Os direitos constitucionais deixaram de ser vistos sob o enfoque meramente individual ou social, passando a terem uma carga jurídica, axiológica, vinculante e suprema. A política constitucional com viés solidário e fraternal passa a se sobrepor sobre a política majoritária (ainda que sob o pretexto de ser social), reconhecendo-se direitos e políticas mínimos a serem preservados e garantidos a todo cidadão, em qualquer circunstância (standarts mínimos4).

É nesse atual contexto que surge a chamada judicialização da política, em que o Estado por meio do seu Poder Judiciário é chamado a conciliar conflitos e garantir políticas sociais mínimas de acordo com o previsto na Constituição. Uma vez previstos direitos e garantias básicas, e elevados a nível constitucional como valores e princípios supremos do Estado Democrático de Direito, o Judiciário é provocado a se manifestar todas as vezes que os direitos constitucionais mínimos de cada cidadão (ou grupo de indivíduos) não são observados ou são desrespeitados nas ações ou omissões políticas praticadas pelos Poderes Executivo e Legislativo.

3 BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 216.constitucionalismo fraterno. Disponível em: http://www.academus.pro.br/mundojustica/artigomj_fraterno.pdf>. Acesso em: 18 jan. 2012.

4 Luíz Roberto Barroso explica que o mínimo existencial é a “locução que identifica o conjunto de bens e utilidades básicas para a subsistência física e indispensável ao desfrute dos direitos em geral”. BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 253.

Isso porque o ser humano passou a ocupar o centro do sistema jurídico e as atividades dos poderes estatais devem ter em vista a garantia de sua dignidade. O Estado deve desenvolver ações sociais positivas para garantir o direito ao mínimo existencial da pessoa humana, assim entendido como direito às condições mínimas de existência humana digna, perfazendo assim a justiça social, distributiva, fraternal e solidária.

Tudo isso, sem que as intervenções judiciais nas políticas sociais provocadas pelo lesado perante o Poder Judiciário sejam tidas como sobreposição ou interferência nos demais Poderes da República.

Ao redor do mundo, Luiz Roberto Barroso destaca que:

“Os exemplos são numerosos e inequívocos. No Canadá, a Suprema Corte foi chamada a se manifestar sobre a constitucionalidade de os Estados Unidos fazerem testes com mísseis em solo canadense. Nos Estados Unidos, o último capítulo da eleição presidencial de 2000 foi escrito pela Suprema Corte, no julgamento de Bush v. Gore. Em Israel, a Suprema Corte decidiu sobre a compatibilidade, com a Constituição e com atos internacionais, da construção de um muro na fronteira com o território palestino. A Corte Constitucional da Turquia tem desempenhado um papel vital na preservação de um Estado laico, protegendo-o do avanço do fundamentalismo islâmico. Na Hungria e na Argentina, planos econômicos de largo alcance tiveram sua validade decidida pelas mais altas Cortes. Na Coréia, a Corte Constitucional restituiu o mandato de um presidente que havia sido destituído por impeachment.”5

No Brasil, dentro do neoconstitucionalismo a judicialização (da política) pode ver sentida de forma clara e evidente. O país vive um momento em seu atual Estado Democrático de Direito em que o Poder Judiciário é chamado a se manifestar sobre questões polêmicas que não conseguiram ser resolvidas no âmbito político ou administrativo das outras esferas de Poder.

5 BARROSO, Luís Roberto. Judicilização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/12921>. Acesso em: 18 jan. 2012.

E isso se deve a 3 (três) causas distintas que, somadas, resultaram nesse movimento que transformou o Poder Judiciário num ator político ativo e interventor  pela judicialização.

A primeira é a redemocratização ocorrida no país mediante promulgação da Constituição de 1988. Com ela, os cidadãos passaram a ter maior consciência dos seus direitos e garantias, elevando-se o nível de informação. A nova constituição criou um ambiente de maior democracia e cidadania, tomado pela maior consciência das pessoas sobre os seus direitos constitucionais (fato que inclusive motivou o maior acionamento e provocação do judiciário).

Da mesma forma, o Judiciário deixou de ser um departamento técnico- especializado e se transformou em um verdadeiro poder político, capaz de fazer valer a Constituição e as leis, inclusive em confronto com os outros Poderes. Nesse mesmo sentido, os Órgãos do Ministério Público e da Defensoria Pública se expandiram e passaram a desenvolver ações institucionais com vistas a cumprir o seu papel constitucional, defendendo a tutela dos direitos e garantias dos cidadãos.

Tudo isso fortaleceu e expandiu o Poder Judiciário, aumentando a demanda por justiça na sociedade brasileira com a redemocratização do país. Inclusive, sobre essa maior conscientização do indivíduo como cidadão e mudança de postura do Judiciário, a estudiosa Ana Paula Tauceda Branco bem escreveu:

“É nesse relacionamento travado entre indivíduo, sociedade e Estado, todos vinculados ao respeito e à efetivação das normas constitucionais fundamentais (neoconstitucionalismo), que os órgãos do Poder Judiciário-ainda que relutantes -a partir do Estado Democrático de Direito, alteraram a tradição da função jurisdicional, para assentá-la sobre a estrita observância da Carta Constitucional e centralizá-la na observação dos princípios e valores soberanamente tidos por fundamentais, de modo a se aproximarem sobremaneira da sociedade civil e consequentemente passarem a um certo protagonismo em relação ao Executivo e ao Legislativo, já que em tempos de cultuação global à valorização econômica,   os   indivíduos   descobriram,   também   pela   atuação   do Judiciário, alguma possibilidade de afetar as escolhas públicas e privadas, com base na necessidade de respeito aos seus direitos fundamentais, individuais e coletivos, bem como aos valores e princípios constitucionais republicanos.6

A segunda causa seria a constitucionalização abrangente advinda dos assuntos tratados pela Constituição de 1988. Nessa Carta, foram positivadas inúmeras matérias que antes eram deixadas para o processo político majoritário e para a legislação ordinária. Por opção do legislador constituinte originário, foi feita uma Carta Constitucional analítica, ambiciosa e desconfiada do legislador ordinário e dos interesses políticos que o envolve.

Ao constitucionalizar diversas matérias antes tratadas e discutidas somente no âmbito político, decididas por políticas administrativas conforme interesse e conveniência dos Poderes Executivo e Legislativo, deu-se a possibilidade do cidadão postular em Juízo a tutela estatal de tais assuntos em Ações Judicias próprias. Como se passou a prever questões políticas sociais como direitos (individuais ou coletivos) na Carta Magna, ofertou-se a possibilidade de se deduzir em Juízo pretensões jurídicas a esse respeito.

Em outras palavras, transformou-se parte da Política em Direito. Tornou- se possível judicializar questões políticas e exigir a tutela jurídica do Estado, provocando o Poder Judiciário e notadamente o Supremo Tribunal Federal a se manifestar sobre determinadas matérias.

Por último, o terceiro fator contributivo para a judicialização no país foi  o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade. É que o sistema adotado é híbrido e eclético, no qual combina a fórmula americana de controle incidental e difuso (qualquer juiz ou tribunal pode deixar de aplicar uma lei em um caso concreto que lhe tenha sido submetido, caso a considere inconstitucional), com o modelo europeu de controle concentrado por ação direta (determinados assuntos podem ser levados em tese e imediatamente ao Supremo Tribunal Federal).

6 TACEUDA BRANCO, Ana Paula. O Ativismo judiciário negativo investigado em Súmulas editadas pelo Tribunal Superior do Trabalho. Disponível em: http://www.amatra17.org.br/arquivos/4ac2c477939c9.pdf> . Acesso em: 20 jan. 2012.

Além disso, dada a ampla legitimidade ativa possível para a propositura das ações diretas no controle concentrado, o acesso ao STF foi franqueado a várias entidades públicas e privadas que agora podem levar qualquer questão política ou moralmente relevante àquela Corte Máxima.

Assim sendo, e entendidas as razões jurídicas-legislativas acima expostas, a conclusão a que se chega é que a judicialização é um movimento inerente ao constitucionalismo brasileiro. Dentro do contexto do constitucionalismo contemporâneo vivido no mundo, caracterizado pelas particularidades do caso brasileiro, percebe-se que a participação do Poder Judiciário é consequência lógica do modelo constitucional adotado, sendo de salutar importância para manutenção do Estado Democrático de Direito (atual Estado Fraterno e Solidário).

Nessa linha de raciocínio, Luís Roberto Barroso conclui que:

“A judicialização no Brasil decorre do modelo constitucional brasileiro e, portanto, em alguma medida ela é inevitável. Constitucionalizar é tirar uma matéria da política e trazê-la para dentro do Direito. E, portanto, existem prestações que o Judiciário não pode se negar a apreciar – e é muito bom que seja assim. Porém, a judicialização tem uma óbvia faceta negativa. É que, na medida em que uma matéria precise ser resolvida mediante uma demanda judicial, é sinal que ela não pôde ser atendida administrativamente; é sinal que ela não pôde ser atendida pelo modo natural de atendimento das demandas, que é, por via de soluções legislativas, soluções administrativas e soluções negociadas. A faceta positiva é que, quando alguém tem um direito fundamental e esse direito não foi observado, é muito bom poder ir ao Poder Judiciário e merecer esta tutela”.7

7 BARROSO, Luís Roberto. O acesso às prestações de saúde no Brasil – desafios ao Poder Judiciário. In: Audiência Pública  –Saúde. Disponível em <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaSaude/anexo/Luis_Roberto_Barroso.pdf.> Acesso em: 18 jan. 2012.

No entanto, a judicialização não pode ser confundida com o movimento chamado por muitos de ativismo jurídico8. Esse fenômeno se refere a verdadeira intromissão indevida do Poder Judiciário nas funções legislativas e executivas, por vezes “criando” normas novas.

No ativismo jurídico, o Juiz usurpa a tarefa do legislador mediante criação de regras e normas não positivadas em lei, nos tratados, ou ainda, na própria Constituição. O ativismo judicial se perfaz por uma decisão em que o Judiciário de modo específico interpreta o ordenamento jurídico, expandindo sentidos, conceitos e alcance das normas jurídicas.

Normalmente, o ativismo jurídico se instala em situações onde os  Poderes Legislativo e Executivo são omissos.

Para Luís Roberto Barroso, a linha divisora entre judicialização da política e ativismo judicial é tênue porque:

“A judicialização e o ativismo judicial são primos. Vêm, portanto, da mesma família, freqüentam os mesmos lugares, mas não têm as mesmas origens. Não são gerados, a rigor, pelas mesmas causas imediatas. A judicialização, no contexto brasileiro, é um fato, uma circunstância que decorre do modelo constitucional que se adotou, e não um exercício deliberado de vontade política (…) Já o ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente ele se instala em situações de retração do Poder Legislativo, de um certo descolamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva.9

Inclusive, a respeito do ativismo judicial o estudioso Luiz Flávio Gomes vai além do seu conceito geral e identifica espécies desse gênero. Conforme explicações dadas, existiriam 2 (dois) tipos distintos de ativismo judicial: o “ativismo judicial inovador (criação, ex novo, pelo juiz de uma norma, de um direito) e há o ativismo judicial revelador (criação pelo juiz de uma norma, de uma regra ou de um direito, a partir dos valores e princípios constitucionais ou a partir de uma regra lacunosa, como é o caso do art. 71 do CP, que cuida do crime continuado). Neste último caso o juiz chega a inovar o ordenamento jurídico, mas não no sentido de criar uma norma nova, sim, no sentido de complementar o entendimento de um princípio ou de um valor constitucional ou de uma regra lacunosa.10

8 De acordo com Luiz Flávio Gomes, “O ativismo judicial foi mencionado, pela primeira vez (cf. M. Pereira, em O Globo de 21.03.09, p. 4), em 1947, pelo jornalista americano Arthur Schlesinger, numa reportagem sobre a Suprema Corte dos Estados Unidos.” GOMES, Luiz Flávio. O STF está assumindo um ativismo judicial sem precedentes?. Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2164, 4 jun. 2009. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/12921>. Acesso em: 18 jan. 2012.

9 BARROSO, Luís Roberto. Judicilização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/12921>. Acesso em: 18 jan. 2012

Porém, de fato o que conseguir identificar de forma clara quando se está diante da ocorrência da judicialização (consequência salutar do constitucionalismo nacional adotado) ou do ativismo judicial (usurpação e desarmonia dos Poderes da República).

Isso porque estamos hoje diante de um Corte Suprema bem ativa no país. Recentemente, o Supremo Tribunal decidiu casos difíceis com viés políticos que tiveram repercussão ampla sobre diversos segmentos da sociedade. Tais julgamentos por vezes foram noticiados e classificados pela imprensa e parte da sociedade civil como verdadeiras decisões de ativismo judicial (e não como meras questões judicializadas).

A título de exemplo, pode-se ressaltar as polêmicas decisões tomadas nos casos:

  • Raposa Serra do Sol (demarcação de terras indígenas), em que o Ministro Menezes Direito propôs procedência parcial, impondo “condições” que, na verdade, resultavam da interpretação de disposições constitucionais aplicáveis (sugeriu a imposição de 19 medidas ou condicionantes para a implementação da demarcação contínua – condicionantes não previstas em lei);
  • Nepotismo, no qual se declarou a constitucionalidade da Resolução nº 7, de 2005, do Conselho Nacional de Justiça, que proibia a nomeação de parentes de membros do Poder Judiciário, até o terceiro grau, para cargos em comissão e funções gratificadas. O STF definiu que, independentemente de lei específica, a proibição deveria ser extraída dos princípios constitucionais da moralidade e da impessoalidade. Em seguida, o Tribunal estendeu a vedação do nepotismo aos Poderes Executivo e Legislativo, aprovando a Súmula de nº 13, com o seguinte teor: “A nomeação de cônjuge, companheiro, ou parente, em linha reta, colateral ou por afinidade, até o 3º grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica, investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança, ou, ainda, de função gratificada na Administração Pública direta e indireta, em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal”;
  • Uso de Algemas, em que o STF com base em um único caso julgado editou a Súmula nº 11 (desrespeitou artigo 103-A expresso da Constituição). Por unanimidade, aquele Tribunal anulou decisão condenatória proferida pelo Tribunal do Júri, em razão do acusado ter sido mantido desnecessariamente algemado durante toda a sessão (o que não seria socialmente aceitável para submeter o acusado a tal humilhação, vulneradora da dignidade da pessoa humana e do princípio da não-culpabilidade). Com base nesse julgamento, foi editada a Súmula nº 11 nos seguintes termos: “Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”.

10 GOMES, Luiz Flávio. O STF está assumindo um ativismo judicial sem precedentes?. Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2164, 4 jun. 2009. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/12921>. Acesso em: 18 jan. 2012.

Não bastasse, em março de 2006 o próprio Ministro Celso de Mello do Supremo Tribunal Federal em entrevista concedida ao site Consultor Jurídico defendeu a atuação da Corte Maior e seu possível ativismo jurídico. Na sua fala, tal Ministro não só defendeu a possibilidade de criação de normas pelo Poder Judiciário (teria esse Órgão agora o poder supra-constitucional de julgar e legislar), como também apontou vantagens para o país desse comportamento. Segundo manifestou, o:

  1. Tribunal deve ter atuação como “co-partícipe do processo de modernização do Estado brasileiro”;
  2. STF deve suprir sim as lacunas na legislação para que prevaleça o espírito da Carta de 88, uma vez que a formulação legislativa no Brasil lamentavelmente nem sempre se revestiria da necessária qualidade jurídica.11

Ora, diante desse contexto cabem alguns questionamentos sobre a legitimidade da Suprema Corte quando desempenha o seu papel com ativismo judicial. Algumas reflexões devem ser feitas à luz do constitucionalismo contemporâneo (que, como exposto acima, admite apenas a judicialização da política) sobre o grau de representatividade que revestem tais decisões judiciais.

Deve-se questionar, por exemplo:

  • se o Supremo pode decidir, legislar, ou concentrar tais poderes em detrimento dos outros Poderes da República, ou até mesmo dentro do Poder Judiciário dos próprios magistrados monocráticos ou tribunais estaduais que estão bem mais próximos dos jurisdicionados;
  • por melhores que sejam as cabeças presentes no Supremo Tribunal Federal, os temas políticos podem ser decididos com o afastamento e sem consulta ao povo?
  • já que nenhum dos Ministros é eleito democraticamente, será que eles representam a vontade de uma maioria?
  • se o povo fosse consultado pelo STF antes ou durante a tomada das suas decisões, os resultados dos julgamentos seriam os mesmos?
  • o Estado Democrático de Direito comporta tamanho poder dado a não representantes do povo (na verdade, representantes de uma elite econômica e cultural do País) para decidir questões políticas ou públicas que afetem toda a sociedade?

11 Entrevista concedida disponível no site CONJUR. Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2006-mar-15/juizes_papel_ativo_interpretacao_lei> Acesso em: 18 jan. 2012.

Luiz Flávio Gomes já alertou sobre os riscos dos avanços judiciais desarrazoados. A confusão prática entre judicialização e o ativismo judicial “está no risco de o Poder Judiciário perder sua legitimidade democrática, que é indireta. Em que sentido? As decisões dos juízes são democráticas na medida em que seguem (nas decisões judiciais) aquilo que foi aprovado pelo legislador. Sempre que o Poder Judiciário inova o ordenamento jurídico, criando regras antes desconhecidas, invade a tarefa do legislador, ou seja, se intromete indevidamente na função legislativa. Isso gera um outro risco: o da aristocratização do Estado e do Direito (que, certamente, ninguém no século XXI está muito disposto a aceitar).12

Inclusive, não sem motivo já está tramitando no Congresso Nacional uma Proposta de Emenda à Constituição nº 33/2011, de iniciativa do deputado Nazareno Fonteles (PT-PI). A idéia defendida nessa PEC é a de que antes de serem aprovadas as decisões sobre súmulas vinculantes, ações diretas de inconstitucionalidade e declaratórias de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, todas deverão passar pelo crivo do Congresso Nacional. Segundo o entendimento daquele parlamentar, todas essas decisões desse nível julgadas pelo Supremo deverão ganhar legitimidade democrática com o exame do mérito pelos parlamentares (representantes do povo).

12 GOMES, Luiz Flávio. O STF está assumindo um ativismo judicial sem precedentes?. Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2164, 4 jun. 2009. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/12921>. Acesso em: 18 jan. 2012.

Nas exposições dos seus motivos, o congressista Nazareno Fonteles (PT- PI) justifica que:

“Em prejuízo da democracia, a hipertrofia do Judiciário vem deslocando do Legislativo boa parte do debate de questões relevantes, como as ações afirmativas de cotas raciais e a questão das células-tronco (…) a súmula vinculante vem sendo utilizada como um ‘cheque em branco’. Há um desapego do Supremo aos contornos dos casos precedentes, bem como à necessidade de reiteradas decisões para que se edite uma súmula (…) havendo divergências entre a posição dos juízes e dos representantes do povo, caberia ao próprio povo a última palavra (…) a opinião de apenas seis juízes, por mais cultos que sejam, não pode sobrepor a soberania popular, pois conhecimento jurídico não é fator de legitimação popular”.13

Por todo o exposto, é de se concluir que o Brasil vive um momento delicado do ponto de vista político-jurídico (e também sociológico). O país se encontra numa posição complicada.

De um lado, o Poder Judiciário é provocado a se manifestar sobre políticas sociais que garantam o mínimo existencial à dignidade humana do indivíduo, razão pela qual se justificaria a judicialização da política nos Tribunais, até mesmo para em casos extremos imunizar possíveis ações públicas danosas implementadas pelo processo político majoritário). Do outro lado, o risco de se agir com ativismo judicial ao prever normas e leis não dispostas no ordenamento jurídico para suprir eventual inércia ou incompetência dos Poderes Legislativo e Executivo na consecução das suas políticas públicas afirmativas (fato que afronta os limites e a tripartição dos Poderes da República, gerando a sensação de ilegitimidade e falta de representatividade democrática da decisão).

Qual a medida certa? Quem está certo? Até que ponto justifica a intervenção excessiva do Poder Judiciário para combater as omissões dos Poderes Legislativo e Executivo? Até onde a Suprema Corte (como máxima instância do Poder Judiciário) pode ser provocada e deve decidir no neoconstitucionalismo sem que a judicialização ser torne ativismo judicial, a ponto de desencadear uma crise de legitimidade e representatividade democrática?

13 CONJUR. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2011-jun-22/pec-preve-submissao-decisoes- supremo-crivo-congresso> Acesso em: 18 jan. 2012.

Essas e outras perguntas devem ser feitas e incentivadas com intuito de se refletir sobre quais os limites, graus de controle e ponto de harmonia dos Poderes da República são os ideais para um constitucionalismo contemporâneo duradouro e acima de tudo sustentável dentro do atual Estado Democrático.

Bibliografia

BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 253.

BARROSO, Luís Roberto. Judicilização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/12921>. Acesso em: 18 jan. 2012

BARROSO, Luís Roberto. O acesso às prestações de saúde no Brasil – desafios ao Poder Judiciário. In: Audiência Pública–Saúde. Disponível      em<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaSaude/anexo/Luis_Robert o_Barroso.pdf.> Acesso em: 18 jan. 2012.

BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 216.

CANOTILHO, Jose Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.7 ed. 6 reimp. Coimbra: Coimbra, 2003, p. 111.

CONJUR.      Disponível       em       <http://www.conjur.com.br/2011-jun-22/pec-preve-submissao-decisoes-supremo-crivo-congresso> Acesso em: 18 jan. 2012.

CONJUR. Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2006-mar- 15/juizes_papel_ativo_interpretacao_lei> Acesso em: 18 jan. 2012.

GOMES, Luiz Flávio. O STF está assumindo um ativismo judicial sem precedentes?.

Jus    Navigandi,    Teresina,     ano    14,    n.    2164,    4    jun.    2009.    Disponível    em: <http://jus.com.br/revista/texto/12921>. Acesso em: 18 jan. 2012.

MACHADO, Clara Cardoso. Limites ao ativismo judicial à luz do constitucionalismo fraterno.                                                         Disponível  em: http://www.academus.pro.br/mundojustica/artigomj_fraterno.pdf>. Acesso em: 18 jan. 2012.

TACEUDA BRANCO, Ana Paula. O Ativismo judiciário negativo investigado em Súmulas editadas pelo Tribunal Superior do Trabalho. Disponível em: http://www.amatra17.org.br/arquivos/4ac2c477939c9.pdf> . Acesso em: 20 jan. 2012.

Matheus Bonaccorsi

Especialista em Direito Empresarial e Governança Jurídica

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