Aspectos da Teoria da Argumentação Jurídica de Robert Alexy

Artigo apresentado em cumprimento às exigências da disciplina “Filosofia do Direito”, ministrada pelo Professor Doutor Gamboji no curso de Mestrado em Direito.

Teoria da Argumentação JurídicaNuma sucinta retrospectiva sobre o Positivismo que vigorava até os anos cinqüenta, a hermenêutica jurídica tradicional se propunha a considerar como Direito somente aquilo que estava positivado no ordenamento jurídico. As bases do racionalismo filosófico afastava qualquer tipo de valoração do intérprete ou julgador (este também visto como o “intérprete no caso concreto”), fosse ela de natureza política, sociológica ou moral. O juspositivista via o ordenamento jurídico como algo perfeito e acabado, sem lacunas, falhas ou antinomias.

Essa corrente clássica do Positivismo foi encabeçada por Hans Kelsen, que elaborou sua Teoria Pura do Direito e dela decorreu a Teoria do Ordenamento Jurídico. Dentro da lógica racionalista, o intérprete deveria se preocupar em subsumir o fato social à norma, utilizando como justificação interna do seu discurso a aplicação do silogismo prático. Para fundamentação do seu entendimento, bastaria a coerência entre as premissas fáticas (maior) e jurídica (menor) adotadas.

O pensamento até então era limitado a identificação da regra jurídica e sua aplicação imediata ao caso concreto, inexistindo maiores considerações sobre a interpretação do receptor da norma jurídica1 (aliás, o sentido de “norma jurídica” se confundia com o própria da “regra jurídica”)2.

1 Segundo Tércio Sampaio Ferraz Júnior “embora o positivismo jurídico radical não corresponda à concepção doutrinária mais aceita, a concepção dominante da norma jurídica continua a vê-la como sinônimo do texto normativo e, principalmente, corno um imperativo acabado e dado antes do caso concreto ao qual ela deverá ser

A partir da metade do século XX, a filosofia jurídica passou a se preocupar com as cartas constitucionais de caráter democrático, que continham em seu bojo nítida carga axiológica na definição dos seus princípios, regras e direitos. Dentro desse contexto, surgiu a Teoria da Argumentação Jurídica como proposta metodológica para aplicação desse  conteúdo aos casos concretos, cuja idéia central era a elaboração de um Discurso Racional como forma de justificar e fundamentar a aplicação dos princípios, regras e direitos pelo Juiz.

A hermenêutica jurídica tradicional desenvolvida até então pelos estudiosos positivistas não era mais suficiente para resolver casos mais complexos existentes numa sociedade democrática e plural. Com o reconhecimento em nível constitucional de princípios e direitos atinentes a grupos sociais distintos e coexistentes, aí incluída também a proteção às minorias sociais, as decisões judiciais fundamentadas no racionalismo filosófico e esgotadas nos métodos de interpretação clássicos se mostraram falhas e incapazes de resolver questões éticas e morais atinentes à sociedade moderna.

Assim, o Pós-Positivismo Jurídico apresentou um conjunto de teorias contemporâneas que admitiam os problemas gerados pela indeterminação do Direito e propunham nova metodologia interpretativa das regras jurídicas (Direito reconhecido e compreendido com seu conteúdo principiológico-normativo).

No âmbito constitucional isso ficou evidente, tendo Frederich Muller afirmado que “Concretizar a constituição traduz-se, fundamentalmente, no ‘processo de densificação’ de regras e princípios constitucionais. A concretização das normas constitucionais implica um processo que vai do ‘texto da norma’ (do seu enunciado) para uma norma concreta – ‘norma jurídica’ – que, por sua vez, será apenas um resultado intermédio, pois só com a descoberta da ‘norma de decisão ‘para a solução dos casos jurídico-constitucionais teremos o resultado final da concretização. Esta concretização normativa é, pois, um trabalho técnico- jurídico; é, no fundo, o ‘o lado técnico do procedimento’ estruturante da normatividade. A concretização, como se vê, não é igual à interpretação do texto da norma; é sim, a ‘construção de uma norma jurídica’ .”3

 aplicada.”(Teoria da Norma Juridica: um modelo pragmático Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1980, p. 7).

2 Para a perfeita percepção do alcance do significado e da importância das normas jurídicas em geral e dos princípios em particular, é fundamental não confundir norma jurídica com o texto da norma jurídica, ou texto normativo. (GRABRICH, Frederico de Andrade. O Caráter Normativo dos Princípios. Revista Forense, Publicação bimestral. Volume 393 – 2007 (setembro/outubro).

Realmente, a norma não decorre imediatamente do texto normativo. A juridicidade da norma é construída e, muitas vezes, reconstruída e atualizada de acordo com as necessidades sociais, por meio de interpretação. O texto da norma é apenas um signo, que somado a interpretação do receptor se transforma em norma jurídica (isto é, o sinal lingüístico + significado = norma).

Por isso, a limitação interpretativa na aplicação do Direito através dos chamados “cânones de interpretação” (regras de compreensão e aplicação do direito – cronológica, hierárquica e especificidade) se mostraram falhos dentro de uma sociedade cada vez mais plural e feita de minorias. A aplicação do Direito necessitou de se socorrer aos Princípios, atribuindo ao intérprete um espaço axiológico, ético e metafísico na sua aplicação.

Especialmente nos hard cases, em que se vivenciava conflitos decorrentes do exercício de direitos e garantias individuais e/ou princípios constitucionais, foi dado ao intérprete um poder ético muito grande para analisar esses problemas existentes dentro de uma sociedade plural regida pelo estado de direito democrático (tais problemas advém justamente da chamada “constitucionalidade das normas” ou “normatização dos princípios”).

Nesse sentido, o estudioso Marcelo Queiroz Linhares destacou que

“É característica dos Estados efetivamente democráticos a tutela dos interesses relativos aos diversos segmentos que o compõem. Por isso, os ordenamentos jurídicos inerentes às sociedades pluralistas não se resumem  ao reconhecimento apenas dos valores defendidos por um determinado grupo de interesses: ao revés, refletem a complexidade das mais diversas aspirações de todo o corpo social.”

Então, o sistema jurídico passou a ser visto como um conjunto de normas conexas entre si que seriam orientadas pelos Princípios e Valores adotados pela sociedade

3 Apud José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2000, p. 1.168.

(eleitos ou positivados como “vontade geral”). O ordenamento jurídico seria um todo formado intrinsicamente pelos princípios que o compõe e, extrinsicamente regido pelo Princípio da Unidade da Ordem Jurídica4.

A Constituição e as normas infra-constitucionais seriam uma totalidade harmônica, na qual os desentendimentos (ou antinomias5) entre normas jurídicas e princípios conflitantes deveriam ser sanados pelo intérprete (que se utilizaria de conteúdo axiológico e ético para valorar) no julgamento dos casos concretos sem extirpar quaisquer deles do ordenamento. Com alicerce na teoria chamada “Jurisprudência dos Valores”, essa doutrina defende o equilíbrio na aplicação dos princípios constitucionais

Com o passar do tempo, a hermenêutica filosófica percebeu que na aplicação do Direito:

“quando a solução justa de um caso concreto exigir uma decisão que não decorra logicamente do ordenamento, nem puder ser fundamentada com a ajuda das regras de interpretação, restará ao aplicador escolher qual o enunciado normativo singular será afirmado (porque selecionado por volição) ou construído (porque baseado em argumentos extrajurídicos) na decisão. Visto que o decidir envolverá o ato de preferir um comportamento a outro, na base de tal ação estará a alternativa eleita como melhor em algum sentido; a necessária escolha encerra, portanto, um juízo de valor, que será o núcleo da fundamentação” 6

Nesse mesmo sentido, o próprio Robert Alexy disse que “quando os cânones de interpretação não são suficientes para que do ordenamento jurídico decorra a decisão, a fundamentação conterá elementos valorativos”7. A visão sobre a inexatidão jurídica advinda do ordenamento passou a ser reconhecida e percebida como um aspecto inerente a toda manifestação lingüística, que por sua vez deveria ser resolvida pelo intérprete na análise e julgamento do caso concreto.

4 “O princípio da Unidade obriga o intérprete a considerar a Constituição na sua globalidade e a procurar harmonizar os espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a concretizar. Sua função principal é a otimização das normas, na medida em que se tem de produzir um equilíbrio, sem jamais negar por completo a eficácia de qualquer norma. Aplica-se por decorrência lógica à norma antielisiva.” (CARVALHO ESTRELLA, André Luiz. Elisão. Evasão fiscal. Déficit Fiscal. A norma antielisão e seus efeitos – artigo 116, parágrafo único do CTN, in Revista de Direito Administrativo nº 225, Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p.203).

5 Segundo Tércio Sampaio Ferraz Jr., “A antinomia jurídica é a oposição que ocorre entre duas normas contraditórias emanadas de autoridades competentes num mesmo âmbito normativo que colocam o sujeito numa situação insustentável pela ausência ou inconsistência de critérios aptos a permitir-lhe uma saída nos quadros do ordenamento dado” (Apud Maria Helena Diniz. Conflito de Normas. São Paulo: Saraiva, 1996, p.19)

6 LIMA, Silva Lima. A Teoria da Argumentação: a proposta de Robert Alexy para fundamentação racional da decisão jurídica. http//jus.uol.com.br/revista/texto/17268.

Dentro desse contexto, e preocupado com o caráter ético e metafísico do julgamento no Direito, Robert Alexy propôs a Teoria da Argumentação Jurídica, na qual o julgador por um discurso racional deveria fundamentar de forma metodológica a decisão de viés axiológico escolhida, dentro aquelas possíveis no caso concreto.

A Teoria da Argumentação Jurídica foi apresentada como um conjunto de procedimentos e métodos de racionalidade a serem utilizados pelo intérprete, para se alcançar uma justificação aceitável como racional (“teoria procedimental”). Em tal proposta, pretende- se criar uma justificação da decisão através de critérios racionais e teóricos. Seria uma maneira de raciocinar e aplicar o direito através de uma justificação interna das decisões judiciais, composta de dois conjuntos de macros regras.

Isto porque “em um grande número de casos, a decisão jurídica que põe fim a uma disputa judicial, expressa em um enunciado normativo singular, não se segue logicamente das formulações das normas jurídicas vigentes.”8

O primeiro conjunto de regras propostas por Robert Alexy diz respeito à participação e aceitação do discurso. São as Regras de Racionalidade que definem a participação e o sujeito na construção da racionalidade:

  1. Quem pode falar, pode tomar parte no discurso
  2. Todos podem problematizar qualquer asserção
  3. Todos podem introduzir qualquer asserção no discurso;
  4. Todos podem expressar suas opiniões, desejos e necessidades;
  5. Nenhum falante pode ser impedido dos direitos anteriores, mediante coerção interna ou externa ao discurso;

7 Teoria da Argumentação Jurídica. São Paulo: Landy, 2001, p. 33.

8 Robert Alexy. Teoria da Argumentação Jurídica. São Paulo: Landy, 2001, p. 34.

O segundo conjunto diz respeito a Regras de Fundamentação, a fim de delimitar o conteúdo das proposições e regras que se almeja fundamentar. Nessa regra, estariam inclusas:

a) Realizabilidade, em que o intérprete deve observar que a norma escolhida deve ser exeqüível e viável para o agir humano9;

b) Norma Universal para fundamentação, já que a decisão judicial deveria apresentar ao menos uma norma universal, junto a outras proposições;

c) Regra da Ponderação dos Princípios como proposta argumentativa utilizada pelo intérprete, com determinação do peso e

Aqui, importante explicar melhor o que seria o Princípio da Proporcionalidade. Para sua elucidação, o julgador deveria passar pelas três vertentes, a saber:

a) adequação (que preferimos chamar de “motivação”), onde a restrição de cada interesse jurídico pela sobrevivência do outro deve ser idônea, justificável, plausível;

b) necessidade, a restrição a um princípio ou norma deve ser a menor possível para a defesa do valor antagônico; a intervenção será a mínima indispensável; e,

c) proporcionalidade restrita, a vantagem gerada pela aplicação de um interesse deve compensar o grau de sacrifício imposto ao valor

9 Por visarem em última instância o dever ser da conduta humana, a escolha e aplicação de uma norma deve se atentar para algo que seja perfeitamente realizável ao caso, faticamente possível ao humano e suas limitações naturais (limites da realizabilidade). É que as discussões jurídicas são reflexos de questões práticas, em que se pretende a correção do agir (pretensão de justiça formal).

No que tange a esse último critério, André Luiz Carvalho Estrella completa que “devemos aplicar, ainda, o raciocínio baseado na Lei de Ponderação, ordenando que quanto mais intensa for a intervenção em um direito tanto mais graves devem ser as razões que a justificam. Para isso, é necessário passar por três fases: 1) determinar a intensidade da intervenção; 2) determinar as razões que a justificam; 3) ponderação estrita, por meio de atribuição de pesos10 específicos aos interesses em jogo. Neste caso, a restrição imposta a um interesse deve ser a mínima possível para que seja indispensável à sua convivência com o outro, de forma a que nenhum deles desapareça por completo. Se isso acontecer, não haverá ponderação de interesses, e sim, preponderância de interesses, pois o pressuposto dessa técnica é convivência harmônica dos interesses. Logo, os dois interesses sobrevivem juntos, lado a lado. Na verdade, há um acordo de interesses, onde cada um cede espaço ao outro, sem sacrifícios por inteiro de nenhum deles.”11

Portanto, Robert Alexy propôs a Teoria da Argumentação Jurídica como solução para, dentro do conteúdo axiológico inerente as decisões judiciais, fazer-se presente um mínimo de racionalidade que pudesse justificar externamente o conteúdo decisório (interno). Apesar de ser impossível retirar das escolhas judiciais o conteúdo axiológico existente na aplicação do ordenamento jurídico ao caso prático (chamadas por Erros Roberto Grau de “normas de decisão”12), Alexy pretendeu e pretende que as decisões sejam passíveis de um mínimo de racionalidade, devendo para isso seguirem os conjuntos de regras acima.

10 “A atribuição de peso específico torna-se tarefa árdua, já que interesses e valores não possuem uma escala de grandeza, onde haja uma hierarquia. São grandezas quantitativamente imensuráveis” (SARMENTO, Daniel. A ponderação de Interesses na Constituição Federal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 106).

11 CARVALHO ESTRELLA, André Luiz. Elisão. Evasão fiscal. Déficit Fiscal. A norma antielisão e seus  efeitos – artigo 116, parágrafo único do CTN, in Revista de Direito Administrativo nº 225, Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p.205.

12 “Inicialmente caminhamos do ‘texto da norma’ até ‘a norma jurídica’. Em seguida caminhamos da ‘norma jurídica’ até a norma de decisão’, aquela que determina a solução do caso. Apenas então se dá a concretização da norma’, ou seja, mediante a ‘produção de uma norma jurídica geral’, no quadro da solução de um caso determinado. A ‘concretização’ do direito não é mero descobrimento (Rechtsfindung) do direito, mas a produção de uma ‘norma jurídica geral’ no quadro de solução de um caso determinado. Assim, a ‘concretização’ envolve também análise do ‘âmbito da norma’, entendido como talo aspecto da realidade a que respeita o texto. Dizendo- o de outro modo: a ‘norma’é produzida, no curso do processo de ‘concretização’, não a partir exclusivamente dos elementos do ‘texto’, mas também dos dados da realidade à qual ela – a norma – deve ser aplicada.” (GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 2′ ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p.64.)

Ante a problemática vivida por uma sociedade cada vez mais plural e de normatividade fundada em princípios e valores, Robert Alexy construiu sua Teoria da Argumentação Jurídica com a elaboração de uma metodologia que pretende ser capaz de possibilitar uma racionalidade na fundamentação da decisão jurídica, com vistas a afastar a retórica sedutora e subjetiva do julgador que se permitiria tudo. Trata-se de uma Teoria para estabelecer critérios racionais e justificadores (argumentativos) para legitimar a intervenção estatal na aplicação da ordem jurídica no conflito concreto de interesses que, em suma, deveria ter:

  1. Fundamentação em convicções fáticas – decisão deve ter como fundamento “valores da coletividade” ou de “círculos determinados”;
  2. Recurso ao sistema de valores da ordem jurídica – fundamentação se faz pela referência expressa aos valores que podem se extrair do ordenamento;
  3. Princípios suprapositivos – fundamentação baseada na ordem objetiva de valores, ainda que não expressos no ordenamento, mas reconhecidos como de direito naturalmente objetivos; e, por último,
  4. Conhecimentos empíricos – baseada na experiência e constatação sensorial do julgador.

Bibliografia

ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. São Paulo: Landy, 2001.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.

Coimbra: Almedina, 2000.

CARVALHO ESTRELLA, André Luiz. Elisão. Evasão fiscal. Déficit Fiscal. A norma antielisão e seus efeitos – artigo 116, parágrafo único do CTN, in Revista de Direito Administrativo nº 225, Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

DINIZ, Maria Helena. Conflito de Normas. São Paulo: Saraiva, 1996.

FERRAZ, Tércio Sampaio Júnior. Teoria da Norma Juridica: um modelo pragmático Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1980.

GRABRICH, Frederico de Andrade. O Caráter Normativo dos Princípios. Revista Forense, Publicação bimestral. Volume 393 – 2007 (setembro/outubro).

GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 2′ ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991.

LIMA, Silva Lima. A Teoria da Argumentação: a proposta de Robert Alexy para fundamentação racional da decisão jurídica. http//jus.uol.com.br/revista/texto/17268.

SARMENTO, Daniel. A ponderação de Interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000.

Matheus Bonaccorsi

Especialista em Direito Empresarial e Governança Jurídica

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